quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Êxodo: Sua História e Geografia



O livro bíblico do Êxodo relata que os filhos de Israel permaneceram no Egito durante séculos como escravos. Após a saída do Egito, passaram os primeiros quarenta e nove dias de liberdade no deserto, seguindo em direção ao Monte Sinai, local onde permaneceram aproximadamente por um ano e receberam os 10 mandamentos divinos, através de Moisés. O passo seguinte seria uma jornada de alguns dias em direção à Terra Prometida (naquele momento ainda conhecida como Terra de Canaã), que deveria ser conquistada e dividida entre as tribos formadoras do povo. Mas um fato inesperado mudou o curso dos acontecimentos: os espiões, enviados com o objetivo de reconhecer a região a ser conquistada, trouxeram um relato desfavorável à conquista, provocando a revolta de todo o povo. A punição por esta revolta, e pela recusa dos israelitas em confiar na promessa divina da conquista da terra de Canaã, foi a permanência de quarenta anos no deserto, até o florescimento de uma nova geração. 

Durante estes quarenta anos de jornadas pelo deserto, os Filhos de Israel acamparam em quarenta e dois lugares diferentes, seguindo uma rota diferente daquela que seria a mais direta ou a mais próxima do destino final. 

A rota do Êxodo possui duas dimensões: uma dimensão temporal e uma dimensão espacial, que a tornam plena de significado. A dimensão temporal indica que foram quarenta anos de jornadas pelo deserto, decorrentes dos quarenta dias em que os espiões percorreram a terra de Canaã, até o florescimento de uma nova geração. O número quarenta possui uma simbologia especial na Bíblia Hebraica, e um dos seus significados é o período de uma geração. A dimensão espacial, por sua vez, é a descrição geográfica da rota, e se inicia com a escolha da rota, narrada no livro do Êxodo: 

E aconteceu que, quando Faraó deixou ir o povo, Deus não os levou pelo caminho da terra dos filisteus, que estava mais perto; porque Deus disse: Para que porventura o povo não se arrependa, vendo a guerra, e volte ao Egito. Mas Deus fez o povo rodear pelo caminho do deserto do Mar Vermelho; e armados, os filhos de Israel subiram da terra do Egito (Ex 13: 17-8). 

A rota mais curta e lógica para se chegar do nordeste do Egito até Canaã seria aquela ao norte do Sinai, seguindo a costa do Mediterrâneo e atravessando o território dos filisteus, chamada na Bíblia de “O Caminho da Terra dos Filisteus”, “O Caminho do Mar”, ou, em suas versões latinas, de “Via Maris”. Esta rota é a mais comum, utilizada pelos faraós para incursões na Ásia. Tornou-se uma das vias internacionais de comunicação mais importantes através da história, servindo como artéria para o comércio internacional. O livro do Êxodo deixa bem claro que esta rota não foi utilizada pelos filhos de Israel após a saída do Egito: 

“E foi ao enviar o Faraó ao povo, não o guiou o Eterno pelo caminho da terra dos filisteus que era próximo”. 

Este caminho, da fronteira do Egito até Gaza, possui cerca de 240 quilômetros. Esta distância levaria apenas algumas semanas, talvez um mês, para ser percorrida, mesmo por um grande grupo de pessoas, incluindo seus rebanhos. O exército de Thutmosis III (1504 a 1450 a. C.) cobriu esta distância em dez dias. 

Um texto de Mari sugere que uma caravana poderia percorrer 35 quilômetros por dia em um deserto, resultando em 7 dias de viagem. Sendo assim, alguns dias seriam suficientes para percorrer este trajeto, mas outro caminho foi escolhido, e este levou 40 anos para ser percorrido. A rota escolhida foi descrita em Ex 13: 18 como “O Caminho do Deserto do Mar Vermelho”. 

Os filhos de Israel se dirigiram ao sul para o interior do deserto, para áreas fora do controle egípcio. Assim, os israelitas evitariam confrontos contra os filisteus; evitariam as mais de vinte fortificações egípcias ao longo da Via Maris; estariam longe do Egito, evitando que parte dos israelitas se arrependessem da saída do Egito e desejassem voltar, como aconteceu em Pi Hachirot, Refidim, Mará, Taberá/Kibroth Hataavá, e Cadesh Barnea; poderiam, se livrar do que restou da influência egípcia durante a estada no deserto, para serem educados de uma nova maneira, através dos ensinamentos da Torá; teriam a oportunidade de preparar um exército para a conquista de Canaã, transformando escravos em guerreiros. Enfim, o período de jornadas dos israelitas pelo deserto foi decisivo para a transformação de um amontoado de escravos em um povo com um propósito. E o cenário escolhido para esta transformação foi o deserto. 

Alguns estudiosos das jornadas dos filhos de Israel após o Êxodo descrevem os desertos por onde passaram como muito árido e quase sem água; o planalto central da Península do Sinai, por onde acredita que os israelitas tenham passado, como um lugar sombrio, de impossível travessia com rebanhos. 

As temperaturas médias, mínima e máxima, são -5o C e 40,5o C. Chuvas são raras e irregulares, a média anual está abaixo de 0,6 milímetros. Uma pequena parte da neve que cobre alguns picos aumenta os estoques de água, e há também reservatórios subterrâneos suficientemente próximos à superfície para serem interceptados. Piscinas naturais também se formam esporadicamente com água das chuvas, ao longo dos wadis5, e estas águas podem durar meses. Algumas vezes, as águas de reservatórios subterrâneos correm para os wadis, fazendo com que alguns oásis se mantenham, como o oásis de Feiran no oeste e Ein-Kid no leste da península do Sinai. Há vegetação rasteira, típica do deserto, explorada pelos beduínos locais como pasto e combustível. A população de beduínos é de aproximadamente dez mil, que vivem tanto em vilarejos temporários como permanentes. Eles moram em tendas, cabanas de madeira e, em locais permanentes, em estruturas de pedra. Há poucos recursos econômicos e pouca água, e, consequentemente, não há população regular ou sedentária. O Sinai central é chamado, em árabe, Badyat el-Tih, “o Deserto dos Viajantes”, uma área plana de calcário e areia, imprópria para qualquer tipo de plantação. Até a vegetação selvagem luta para sobreviver devido à escassez de água. A economia é baseada em rebanho de cabras, principalmente cabras negras de uma raça anã, adaptada às condições áridas. Estas cabras podem permanecer por quatorze dias sem água, mesmo perdendo até 40% do seu peso. Não há evidências de presença egípcia na região centro-sul do Sinai em época alguma. O deserto é lembrado como lugar ruim, onde não há árvores frutíferas, nem é possível de se semear, mas há animais malvados e peçonhentos, cobras e escorpiões. 

Uma terra desolada, onde não passam nem moram pessoas, e aquele que se arriscar está sujeito à fome e à sede. Os habitantes do deserto estão sujeitos a privações, e se empobrecem fora dos assentamentos. As Escrituras também descrevem o deserto como local de escuridão e sombra da morte: 

“E não disseram onde está o Senhor, que nos fez subir da terra do Egypto? Que nos guiou pelo deserto, por uma terra de charnecas, e de covas, por uma terra de sequidão e sombra de morte, por uma terra pela qual ninguém passava, e homem nenhum morava nella”? (Jr 2: 6). 

Do deserto temível se ouvem os uivos e de lá vem o vento da destruição. O deserto também pode estar em oposição ao Éden: 

“...Ele fará seu deserto como o Éden e suas terras isoladas como o jardim divino..., Is 51: 3; ou “Antes disso a terra era como o Jardim do Éden, depois disso um deserto isolado”, Jl 2: 3), ou ao abismo, ermo. 

Sendo o deserto claramente ruim, é como se fosse um modelo de coisas ruins. 

“Melhor morar em um deserto do que com uma mulher de discórdia e raiva”, Pr 21: 19. 

Apesar do aspecto negativo do deserto estar incorporado à consciência das Escrituras, também há uma relação positiva com o deserto nas lembranças do passado do povo de Israel, em especial neste período de quarenta anos em que os filhos de Israel perambularam pelo deserto. O grande evento das peregrinações dos israelitas no deserto nesta época é o encontro com Deus no Sinai, encontro este de grande importância para a história da humanidade.  

O período de caminhadas configurou a relação entre o povo de Israel e o deserto. Segundo a visão de alguns profetas, as peregrinações no deserto tornaram possível a aproximação entre Deus e Israel. Apesar de, conforme já mencionado, o deserto ser uma terra árida, desolada e da sombra da morte, de todos os lugares por onde Israel passou, é no deserto que o profeta, alegoricamente, chama Israel de noiva, aquela que passa por provações e segue a Deus, que é como um noivo, numa terra não semeada: 

[…] Lembro-me de ti, da beneficência da tua mocidade, e do amor dos teus desposorios, quando andavas após mim no deserto, n’uma terra que não se semeava” (Jr 2: 2). 

Percebe-se que os anos após a saída da terra do Egito são comparados aos anos de juventude, e Deus trata Israel com bondade e amor. As mesmas ideias dos nostálgicos anos de juventude e de bondade se encontram em Os 2: 15: 

“E lhe darei as suas vinhas d’ali, e o vale de Achor, para porta de esperança; e ali cantará, como nos dias da sua mocidade, e como no dia em que subiu da terra do Egypto”. 

Enquanto estava no deserto, Israel era fiel a Deus: 

“Achei a Israel como uvas no deserto, vi a vossos paes como a fructa temporã da figueira no seu princípio” (Os 9: 10). 

O deserto é considerado por Ezequiel como um lugar de julgamento: 

“Como já entrei em juízo com vossos paes, no deserto da terra do Egypto, assim entrarei em juízo convosco [...]. E vos farei passar debaixo da vara, e vos farei entrar no vínculo do concerto” (Ez 20: 36-37). 

O deserto parece ser uma alusão ao exílio, um local de arrependimento. A volta para Judá parece, para Isaías, uma nova saída do Egito, uma nova encarnação das viagens pelo deserto, onde ocorrem maravilhas Divinas: 

“[...] porque águas arrebentarão no deserto e ribeiros no ermo. E a terra secca se tornará em tanques, e a terra sedenta em mananciaes d’água; e nas habitações em que jaziam os dragões haverá herva com cannas e juncos” (Is 35: 6-7). 

Tanto a topografia quanto a cronologia da história têm significação religiosa. Os israelitas saem do Egito, uma terra de sofrimento, mas de fartura, e rumam para o deserto, uma terra de fome e morte potenciais, atravessando a água para a terra seca. Isto é possível por causa da intervenção Divina. Pela intervenção Divina ulterior, o faraó e o exército egípcio são destruídos. Mas os israelitas são miraculosamente providos de alimento (maná) e água. No fim do período de quarenta anos de vagueação no deserto, mais uma vez os israelitas atravessam a água (desta vez o Jordão) para a terra seca (Js 3: 4). 

Um deserto prototípico, um suposto “outro mundo”, fornecido pelo meio geográfico das vagueações do Livro do Êxodo: 

Se se está no Egito, o deserto é onde se chega ao cruzar o Mar Vermelho; se se está na terra de Israel, o deserto é onde se chega ao cruzar o Jordão. O deserto é o Outro Mundo. Entrar ou sair do deserto simboliza um movimento metafísico do aqui-e-agora para a ausência de tempo do Outro ou vice-versa. Nesse outro mundo tudo acontece às avessas. O pão celestial cai do céu como chuva; a água celestial não cai como chuva, mas emerge de uma rocha. O deserto é marcado como o Outro absoluto. Ele é um mundo onde o alimento comum não está disponível, mas onde o povo eleito de Deus é alimentado com pão Divino e com água Divina. É um mundo em que os profetas escolhidos, Moisés e Josué, e em grau menor Aarão e Miriam, conversam diretamente com Deus. 

É um mundo em que o rito da circuncisão não é exigido (com a enigmática exceção de Gérson). É um mundo com limites de água nitidamente definidos: o Mar Vermelho, de um lado, o Rio Jordão, de outro. Para entrar neste outro mundo sagrado, pessoas comuns (outros que não profetas escolhidos como Moisés e Aarão) precisam de intervenção Divina pela qual os limites de água sejam tornados transponíveis. É um mundo que inclui a montanha de Deus, Monte Sinai (Horebe), que é em si limitado, um mundo à parte dentro de um mundo à parte. 

Assim especificado, o deserto, o Outro Mundo das coisas sagradas, é em tudo o avesso exato do mundo profano familiar às pessoas comuns, entregues às suas atividades comuns seculares. 

O deserto da Península do Sinai tem outro significado: uma ponte entre continentes, como também uma ponte metafísica entre Deus e o homem. Para cada um dos quarenta e dois acampamentos, ou estações, por onde passaram os filhos de Israel durante este período de quarenta anos no deserto, é possível fazer uma análise histórica, geográfica e arqueológica. Cada nome possui um significado específico. Há três diferentes grupos de nomes de acampamentos: nomes de locais que já existiam antes da passagem dos filhos de Israel; nomes decorrentes de alguma característica do local; nomes decorrentes de eventos que ocorreram durante a estadia dos filhos de Israel. 

A localização de qualquer um dos acampamentos associados à jornada dos filhos de Israel após a saída do Egito é muito difícil. Quase nenhum dos lugares pode ser identificado com certeza. Assim, as localizações sugeridas, em geral, são baseadas em tentativas. Portanto, não temos certeza sobre nomes e localizações geográficas de diversos lugares; não podemos identificar com exatidão diversos locais por onde passaram os filhos de Israel, mencionados no Pentateuco; também não conseguimos relacionar a história do Êxodo com a história universal; além disso, ainda não há provas ou indícios arqueológicos destas jornadas. 

A hipótese do salvamento dos israelitas da perseguição egípcia no mar deve ser permanentemente descartada. A narrativa do Êxodo não é uma tradição confiável. Alguns estudiosos consideram a narrativa das jornadas pelo deserto um épico ou um rito de passagem ou iniciação. Esse relato possui ritos simbólicos de passagem: o povo libertado da escravidão, que ganha uma nova identidade como “o povo de Deus” na montanha sagrada, e entra na “Terra Prometida” com sua nova identidade. Andanças ou jornadas podem ser vistas como paradigmas de rituais de iniciação, como a busca de conhecimento ou busca do centro espiritual ou psicológico. 

É claro que surgem, habitualmente, obstáculos a serem vencidos, e isso faz com que a jornada proporcione a possibilidade de aprender a lidar com dificuldades. O período de quarenta anos no deserto deve ter ensinado aos israelitas como sobreviver em situações extremas. A narrativa Bíblica tem um significado diferente, não de um épico heroico de migração, mas da lembrança vergonhosa de uma escravidão que só o poder divino pode libertar. Não pode realmente haver dúvidas de que os ancestrais de Israel tinham sido escravos no Egito e escaparam de uma maneira maravilhosa. Quase ninguém hoje duvidaria disso. Os detalhes das jornadas e da vida no Sinai como a Torá os apresenta estão de acordo com aquilo que sabemos sobre o Sinai. (…) Parece-me mais fácil acreditar que a Bíblia cuidadosamente preserva um autêntico retrato das jornadas e da vida no deserto do Sinai do que a suposição de que autores que viveram entre seiscentos e setecentos anos depois dos eventos, desconhecendo o passado e usando imaginação criativa, possam ter alcançado um nível de acerto tão elevado quanto esta investigação demonstrou. 

As narrativas mostram um conhecimento prático das condições do Sinai que não poderia ter sido adquirido por escritores românticos mais recentes da época do exílio babilônico ou da Judéia empobrecida dos períodos persa e helenístico, a centenas de milhas de distância dos locais e fenômenos em questão. 

Os grandes objetivos dos israelitas foram a aceitação, como nação, do Deus de Israel e o recebimento da Torá na montanha escolhida. Foi neste período que Israel recebeu a sua religião característica, que se tornou um povo. A origem, a própria fundação da religião de Israel, ocorreu no deserto. 

Todos devem passar por jornadas, progredindo em etapas, para vencer as próprias limitações. Quando uma pessoa passa de um nível para outro, ela deve aprender a lidar com novos desafios. O sucesso da missão é alcançar a Terra Prometida, “que mana leite e mel”. 

O período de jornadas dos israelitas pelo deserto, saindo da escravidão do Egito e alcançando a Terra Prometida, é a narrativa da quebra das correntes, da vitória dos escravos sobre os escravizadores, da busca da liberdade e da autodeterminação de um povo, enfim, uma narrativa épica e simbólica que representa a esperança. Manu Marcus Hubner (Revista Estação Literária)


REFERÊNCIAS: 
AHARONI, Yohanan. The Land of the Bible. A Historical Geography. Philadelphia: The Westminster Press, 1979. 
ALTER, Robert e KERMODE, Frank. Guia Literário da Bíblia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997.  
BATTO, Bernard F. The Reed Sea: Requiescat in Pace. In: Journal of Biblical Literature, vol. 102, n. 1 (1983), pp. 27-35, disponível em: <http://www.jstor.org/stable/3260744>, acesso em: 14/08/2009. 
BEIT-ARIEH, Itzhaq. The Route Through Sinai: Why the Israelites Fleeing Egypt Went South. In: Biblical Archaeology Review, vol. 14, n. 03 (1988), pp. 28-37, disponível em: <http://cojs.org/articles/BAR%201988%20May-Jun/The%20Route%20Through% 20Sinai.pdf>, acesso em: 23/06/2009. 
BEREZIN, Jaffa Rivka. Dicionário Hebraico-Português. São Paulo: Editora Universitária de São Paulo, 2003. 
BOGOMILSKY, Moshe. Vedibarta Bam: And You Shall Speak of Them. Vol. IV - Bamidbar. New York: Hebrew Books, 2006. 


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