Chegara
a hora da triagem. De todos os que seguiam a Jesus, doze seriam escolhidos para
serem Seus apóstolos. Logo no início, Pedro se destacou. Foi ele o porta-voz
dos demais ao confessar que Jesus era ninguém menos que o Cristo, o Filho do
Deus vivo. Dentre a multidão que seguia a Jesus, uns diziam que Ele era João
Batista, outros, Elias. Mas Pedro acertou na mosca. Ficava evidente que entre
eles, os mais chegados, e os demais, abria-se um abismo. Pedro deve ter se
sentido muito importante, a ponto de querer dissuadir Jesus de entregar-Se para
ser crucificado. Porém, acertar uma vez não significa acertar sempre. Os mesmos
lábios que disseram que não fora carne ou sangue que lho revelara que Jesus era
o Cristo, também o repreenderam: Pra trás de mim, Satanás!
Dos
doze, Jesus separa três, Pedro, Tiago e João, e os leva para o monte. Lá
assistem “de camarote” à transfiguração do Seu rosto e à aparição de duas das
figuras mais importantes do Antigo Testamento, Moisés e Elias. Devem ter se
sentido mais importantes do que os nove que ficaram lá embaixo. E pra
completar, Jesus lhes pede sigilo absoluto. Estavam proibidos de contar aos
demais o que haviam presenciado. Portanto, dentre os doze, eles se sentiam os
VIP.
Quando
descem do monte, deparam-se com uma inusitada cena. Os nove preteridos passavam
o maior vexame tentando exorcizar um rapaz. O pai, desiludido vem ao encontro de Jesus reclamando que Seus
discípulos eram incapazes de libertar seu filho. “Ó geração incrédula e
perversa!”, exclama o Mestre. Que vergonha! Os três seletos devem ter
imaginado: Agora sabemos porque fomos preferidos e eles preteridos. Se eles não
podem expulsar um demônio, que condição teriam de ver o que vimos?
A
língua estava coçando… porém não podiam contar aos demais o que acontecera lá
em cima.
De
repente, Jesus percebe uma discussão em voz baixa. Quem, dentre os doze, seria
o mais importante? Quem teria a primazia sobre os demais? Para encerrar a
discussão idiota, Jesus toma uma criança, e diz, dirigindo-Se a eles:
“Qualquer
que receber esta criança em meu nome, recebe-me a mim; e qualquer que me
recebe, recebe o que me enviou. Pois aquele que entre vós todos for o menor,
esse é que é grande.” Lucas 9:48
Bem
que poderiam dormir sem essa! Mas Jesus não podia desperdiçar a oportunidade de
lhes dar uma importante lição acerca de como as coisas funcionam no Reino de
Deus, onde a ordem é subvertida, e o maior é aquele que serve aos demais, e não
aquele que se serve deles.
No
Reino não existem VIP’s! Não existe discípulo de primeira classe e discípulo da
classe econômica. Por maior que tenha sido a experiência que tivemos, não nos
confere o direito de nos servir dos outros e nos alavancar à primazia sobre
eles. Quem viu o rosto de Jesus transfigurar não é mais importante do que os que
ficaram lá embaixo amargando a experiência de não conseguir expulsar um
demônio. Quem fala em línguas não é mais importante do que quem não fala. Quem
profetiza não tem primazia sobre quem não o faz. Quem ostenta um título não
deve valer-se dele para exercer domínio sobre os demais.
Parecia
que a discussão terminara. Embora tenham se silenciado, esperaram a ocasião
oportuna para deixar emergir a mesma questão, ainda que de maneira velada. E a
primeira oportunidade surgiu imediatamente.
João,
um dos três VIP’s, disse: “Mestre vimos um homem que em teu nome expulsava
demônios, e nós o proibimos de fazer isso porque não segue conosco” (v.49). Era
como se João quisesse dizer: Senhor, tem um cara que não pertence ao nosso
círculo, mas consegue o que nossos colegas aqui não conseguiram. Ele expulsa
demônios em Teu nome. Percebe a ironia?
Além
de dar uma implicada com os outros nove, João insinua que o direito a expulsar
demônios era uma exclusividade dos doze. Quanta ousadia querer o monopólio do
nome de Jesus! Para a surpresa de todos, Jesus respondeu: “Não o proibais, pois
quem não é contra vós é por vós” (v.50).
Ser
escolhido de Deus não significa ser preferido. Onde houver preferidos, haverá
também preteridos. Ele usa a quem quer, onde quer, e como quer. Cristo jamais
esteve limitado aos doze, nem aos setenta enviados posteriormente, nem mesmo à
igreja. Ele não assinou contrato de exclusividade com quem quer se seja. E se
houver alguém usando Seu nome para além de nossos arraiais eclesiásticos, isso
deveria nos causar júbilo em vez de consternação. O escopo do Espírito Santo
não está circunscrito aos limites denominacionais ou doutrinários. Ele soprar
aonde quer, e ninguém fica sabendo de onde veio, ou pra onde vai.
O
assunto ainda não se encerrara. Decidido a ir para Jerusalém, onde deveria
sofrer e ser crucificado, Jesus “mandou mensageiros adiante de si, os quais
entraram numa aldeia de samaritanos, para lhe prepararem pousada; mas não o
receberam, porque viram que ele ia para Jerusalém” (vv.52-52). Acho que não
preciso discorrer aqui sobre a animosidade recíproca que havia entre judeus e
samaritanos. Pelo visto, os samaritanos não tinham nada contra Jesus. Numa
outra ocasião, saíram ao encontro d’Ele, depois de ouvirem dos lábios de uma mulher
que talvez Ele fosse o tão esperado Messias. Porém, quando souberam que ali
seria apenas uma rápida escala para Jerusalém, recusaram hospedá-Lo. Aquela era
a deixa tão esperada pelos irmãos Tiago e João, dois dos VIP’s do Monte da
Transfiguração.
“Os
discípulos Tiago e João, vendo isto, perguntaram: Senhor, queres que mandemos
que desça fogo do céu e os consuma, assim como fez Elias?” (v.54).
A
sugestão deles fazia todo sentido. Afinal, quem eles haviam visto lá em cima em
conferência com Jesus? Moisés e Elias. Quem mal haveria em tomar um dos dois
como referência numa situação daquela? O que faria Elias?
O
que eles haviam se esquecido é que o esplendor do rosto de Jesus foi tamanho
que ofuscou a presença dos dois profetas. E a voz que bradou do céu disse: Este
é o meu Filho, a Ele ouvi! Portanto, nem Moisés nem Elias, ou qualquer outro
personagem bíblico nos serve de referência absoluta. Somos discípulos de Jesus,
não de Elias, Eliseu, Samuel, Gideão, Davi ou qualquer outro. Todos eles
tiveram sua importância na execução dos propósitos divinos. Porém, seu brilho
foi ofuscado pelo esplendor da face de Cristo. Todos eles tiveram virtudes e
vicissitudes, erros e acertos. Porém em Cristo encontramos a perfeição. Todos
foram esboços, imagens de Deus maculadas pelo pecado, mas em Cristo encontramos
a “imagem do Deus invisível” (Cl.1:15), a “expressão exata do Seu Ser” (Hb.
1:3).
Tiago
e João esperavam receber um elogio de Cristo, ainda que não acatasse sua
sugestão. Em vez disso, foram repreendidos: “Vós não sabeis de que espírito
sois, pois o Filho do Homem não veio para destruir as almas dos homens, mas
para salvá-las” (vv.55-56).
Se
fosse Elias naquela situação, não hesitaria em ordenar que descesse fogo do céu
e consumisse aqueles samaritanos ingratos e profanos. Se fosse Eliseu, talvez
ordenasse que fossem devorados por ursos. Se fosse Moisés, talvez lhes enviasse
pragas. Se fosse Davi, quiçá lhes enviasse tropas para dizimá-los. Mas em se
tratando de Jesus, não se poderia esperar outra coisa que não fosse perdão.
No
Reino de Deus não há lugar para rivalidade, nem para exclusividade, nem para
revanchismo. O Reino de Deus funciona à base de amor, perdão, cooperação e
comunhão. Deus não tem favoritos. Deus tem escolhidos em prol de todos.
Pr. Hermes C. Fernandes
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