O chamado de Abraão representa um divisor de águas no livro do Gênesis. Antes de Abraão, todos dramas vividos no Gênesis tratam da evasão, da negação e da falta de responsabilidade com que os personagens das histórias escolheram viver.
Adão, ao ser questionado por Deus sobre seu pecado, prontamente negou responsabilidade pessoal, culpou a sua mulher. Caim negou responsabilidade moral para com seu irmão Abel:
“Sou eu guardador do meu irmão?” Gênesis 4:9.
Noé era justo, porém não foi feliz ao negar sua responsabilidade com o coletivo.
Os construtores da torre de Babel negaram a responsabilidade ontológica, isto é, não compreenderam que cada ser tem a sua própria característica, humano é humano, divino é divino.
Abraão representa este marco, que oferece uma nova visão que se contrapõe a todas essas falhas anteriores.
Diferente de Adão, Abraão aceita responsabilidade pessoal, aceitando a palavra de Deus, partindo em direção ao desconhecido, por obediência ao chamado divino.
Adão foi exilado do jardim contra a sua vontade. Abraão vai para uma espécie de exílio, mas de forma voluntária, para uma terra estranha, guiado apenas pela voz de Deus.
Abraão aceita a responsabilidade do chamado. Ao contrário de Caim, ele aceita a responsabilidade moral, resgatando seu sobrinho Ló de uma guerra. Ele é o "guardador" de seu irmão, ou melhor, do filho de seu irmão, aquele mesmo dever que Caim negou ser.
Abraão sabia que nós temos deveres para com os outros e não só para consigo mesmo. Este é um elevado senso moral.
Em contraste com Noé, ele aceita a responsabilidade com o coletivo. E intercede pelos habitantes de Sodoma e Gomorra, mesmo sabendo que eles eram pecadores, uma vez que poderia existir inocentes entre eles.
Eles não eram seus parentes ou amigos, mas eram seres humanos, o que era motivo suficiente para que Abraão orasse por eles, e mesmo, debatesse com Deus em favor dos moradores de Sodoma.
Ele não foi como os construtores de Babel, pois possuía responsabilidade ontológica, o dever do ser humano em responder com ajuda à necessidade dos outros e ao comando divino.
Abraão sabia que todos somos "pó e cinza" diante do infinito Deus:
"Eis que agora me atrevi a falar ao Senhor, ainda que sou pó e cinza." Gênesis 18:27.
Ele não tenta construir uma torre para chegar aos céus, mas assim como Jesus, aceita a tarefa de se submeter à vontade do céu, aqui na terra:
"Seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu" Mateus 6:10.
Abraão tem um comportamento diferente de todos aqueles que o antecederam, toda a sua vida se torna uma resposta ao chamado divino.
Até aquele momento, só vemos pessoas que enxergavam os mandamentos de Deus como um tipo de constrangimento do qual eles buscavam fugir. Mas não é assim com Abraão, para ele o mandamento divino traz vida em si mesmo.
Abraão ouve o chamado divino, e o compreende e assim age com muito orgulho de fazer a vontade de Deus. Ele cumpre conscientemente o mandamento, vivendo na presença da vontade divina.
Abraão o pai da fé, não foge à responsabilidade, onde o mandamento divino e a ação humana se encontram, dando origem a benção e a ordem, que são construídas sobre os pilares da misericórdia e da justiça.
Essas são a base da liberdade, mas não a liberdade de que falamos no nosso tempo atual - onde liberdade é percebida como o direito de fazermos o que quisermos, o que leva a uma cultura de direitos apenas.
Liberdade verdadeira é a habilidade de escolhermos aquilo que devemos escolher, fazendo o que é correto, sendo parceiros de Deus na construção da graça e de uma sociedade ordenada - liberdade com responsabilidade.
Abraão era livre para se submeter à vontade divina, e escolheu fazê-lo, ainda que fosse um longo e duro caminho.
Por muito tempo, a humanidade vem atribuindo suas falhas e fracassos a elementos externos de si mesmos, que seriam independentes à sua vontade, tirando a responsabilidade deles mesmos.
No tempo antigo, os homens culpavam os astros e estrelas, o destino e a fúria dos deuses.
Hoje em dia eles culpam seus pais, seus parentes, o meio em que foram criados, os genes, o sistema educacional, a mídia, os políticos e até mesmo a igreja.
Vivemos uma era onde as pessoas parecem sofrer de vitimismo, simplesmente tentam se estabelecer com vítimas para serem vistas com mais simpatia, e evitar serem criticadas.
A cidade de Ur dos Caldeus ficava na Mesopotâmia. A Mesopotâmia era de aproximadamente 966 km de comprimento, por 483 km de largura na sua maior extensão no Norte, e cerca de 241 km de largura ao sul.
Ur ficava em torno de 240 km de distância do Golfo Pérsico e a cerca de 354 km da atual Bagdá.
A porção norte da Mesopotâmia era conhecida no tempo do antigo testamento, como Assíria. Já a parte sul era denominada de Babilônia.
A Babilônia era subdividida em duas partes, a Suméria (Summer), e a Acádia (Akkad). Nos dias de Abraão, os reis de Ur, se intitulavam a si mesmos como reis da Suméria e da Acádia.
A antiga ur era importante e próspera. Talvez para nós, nos dias de hoje, não seja tão evidente a significância da mudança de Abraão da cidade Sumeriana de Ur, para o local que seria mais tarde conhecido como Canaã, Palestina, ou Israel.
Ur, atualmente não está localizada em uma das mais progressivas regiões do planeta. Mas as condições geopolíticas e econômicas eram bem diferentes na época de Abraão e Sara.
Ur era uma potência, que estava na vanguarda do desenvolvimento científico e tecnológico, enquanto que a palestina, o rumo que Abraão seguiria, ainda era uma terra deveras selvagem.
Ur dos Caldeus, controlava um império poderoso, e era, talvez, a maior cidade-estado do mundo daquele tempo. Ur era a capital do mundo, quem sabe uma "Nova York" atual.
A cidade de Ur era um próspero centro industrial, comercial, com desenvolvidas técnicas de agricultura, com uma população estimada em mais de 360 mil habitantes, de acordo com as estimativas feitas pelo arqueólogo e escavador, C. Leonard Wooley.
Se Ur dos Caldeus era a cidade em proeminência nos dias de Abraão, e se estava localizada na região que liderava o desenvolvimento tecnológico-cultural no mundo, a decisão de Abraão em deixá-la, e seguir o chamado divino, toma um novo significado.
Isso porque o apelo à posse da terra, em uma região super valorizada, na vanguarda do desenvolvimento mundial, era fortíssimo. O jogo de interesses naquela região, já desde aquela época, era motivo de influências, que se faziam perceber no caráter humano.
Ao encontro dessa percepção, vem Marx (um intelectual e revolucionário alemão, fundador da doutrina socialista moderna).
Ele afirmava que o homem é o produto das forças sociais, que eram moldadas segundo os interesses das classes dominantes, aqueles que são os donos de propriedades, principalmente de terras.
Porém, o primeiro mandamento de Deus a Abraão, mostra que o homem é capaz de superar tais forças:
"Ora, o Senhor disse a Abrão: Sai-te da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai, para a terra que eu te mostrarei." Gênesis 12:1
Deus estava convocando Abraão a se libertar de todas as forças, sejam elas sociais ou econômicas. Em Abraão se daria o surgimento de uma nova Fé, que não poderia ser subserviente ao poder político-econômico, ou mesmo social.
O mandamento para que ele deixasse a sua parentela, faz referência às influências biológicas ou genéticas, tidas como fator determinante no comportamento humano.
Spinoza (um dos grandes racionalistas do século XVII dentro da chamada Filosofia Moderna), dizia que o homem é guiado por instintos e necessidades biológicas que nascem conosco, prefigurando um tipo de determinismo genético.
Mas através de Abraão, Deus nos ensina que é possível romper com tais influências bio-genéticas: "Sai-te da tua terra, da tua parentela", significa também:
"deixe as circunstâncias do seu nascimento. Não deixe que a sua cultura ou tendência familiar te domine".
Freud concluiu que o nosso modo de ser é consequência dos traumas da nossa infância, da influência dos nossos primeiros anos de vida, e do relacionamento e dos problemas que tivemos com nossa mãe, especialmente com nosso pai.
Entretanto, assim Deus disse a Abraão "Sai-te... da casa de teu pai" Gênesis 12:1.
Ou seja, é possível sim se harmonizar com a imagem de nossos pais, superar eventuais desentendimentos, e libertar nossa alma de qualquer sofrimento que deles possam advir, perdoando e obedecendo este mandamento divino para deixar tais lembranças negativas.
O chamado de Deus a Abraão "Sai-te da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai, para a terra que eu te mostrarei." Gênesis 12:1, é o resumo de um novo e esperançoso caminho para a humanidade.
É um acontecimento que poderia ser descrito com o mesmo título da famosa autobiografia de Nelson Mandela: A longa caminhada para a liberdade.
Há duas liberdades fundamentais que a bíblia descreve, a liberdade divina e a liberdade dos seres humanos. Deus não é uma força impessoal. Ele age na criação, na revelação e na redenção, e faz escolhas e toma decisões.
E Ele nos deu também semelhante capacidade de fazer escolhas. Não existe destino ou pré-destinação.
"Os céus e a terra tomo hoje por testemunhas contra vós, de que te tenho proposto a vida e a morte, a bênção e a maldição; escolhe, pois, a vida". Deuteronômio 30:19
É assim, a liberdade precisa ser escolhida, você escolhe, decide ser livre. Mas isso precisa ser aprendido, precisa de entendimento, de prestar atenção aos detalhes.
Ninguém compõe uma grande sinfonia ou escreve um livro best seller sem antes ter se preparado por muito tempo.
Liberdade é um processo, que começa a se manifestar vagarosamente, que vai gradualmente se tornando liberdade.
A habilidade de escolher e de decidir sem se deixar influenciar por pressões, e agir respondendo conscientemente, educadamente, julgando com sabedoria e moralidade.
Resumindo, esta é uma jornada, um longo caminho a se aprender, essa é a jornada de Abraão.
"E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará". João 8:32.
Este é o significado profundo das palavras que abrem a história de Abraão, uma caminhada para dentro de si mesmo.
Deixar para trás todas as influências externas que tentam te fazer de vítima de circunstâncias que estão além do seu controle, para então refletir e examinar a si mesmo.
É só lá, dentro de si mesmo, que a liberdade nasce, é praticada e pode ser sustentada.
"Examine-se, pois, o homem a si mesmo..." I Cor. 11:28. (Israel Silva).
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