Os
antigos pensavam que a vida estava no sangue e Israel participava da mesma
opinião, por isso tinha três prescrições acerca do sangue (Gn 9,4 e Dt 12,23)
1ª) é proibido comer o sangue ou a carne com sangue;
2ª)
é proibido derramar o sangue de outra pessoa;
3ª)
é proibido oferecer sangue em sacrifício aos deuses.
Mas como os antigos chegaram a essa concepção de que a vida estava no sangue? Os passos para se chegar a esta concepção foram os seguintes:
§ Os
antigos tinham uma medicina elementar.
§ Mas
eles notaram que o bebê só pode ser considerado vivo depois que inspira (e
chora).
§ Observaram
também que uma pessoa só poderia ser considerada morta depois que expirasse (e
não mais inspirasse).
§ Deduziram
que a alma estava na respiração. Então: a alma era o ar. E entrava na pessoa
pelo nariz, quando esta nascia, e saia pelo nariz, quando esta morria.
§ Então
eles se perguntaram: “Durante a vida onde fica a alma na pessoa? Ou seja, que
parte do corpo é a sede da alma?”.
§ E
veio uma nova observação da realidade: os soldados feridos em batalha
sangravam.
§ O
sangue, ao sair do corpo deles, borbulhava. Logo, o sangue continha ar.
§ Enquanto
existia sangue no ferido ele permanecia vivo. Mas quando o sangue saía por
completo, ele morria.
§
Logo,
a religiosidade chegou à seguinte conclusão:
A
alma é o ar. Entra no corpo pelo nariz e vai para o sangue. Logo concluíram: a
alma está no sangue. Daí a proibição de Dt. O texto de Dt 12,23 diz o
seguinte:
“Somente empenha-te em não comeres o
sangue, pois o sangue é a vida;
pelo que não comerás a vida juntamente com a carne“
pelo que não comerás a vida juntamente com a carne“
Mas
que vida é esta? Em hebraico, vida é nephesh, significando também
personalidade, individualidade, instinto ou emoção. A Septuaginta traduziu
nephesh (vida) para o grego com a expressão psyché, que deu psique.
A
vulgata traduziu psyché por anima. Então, em latim, ficou assim a tradução: “hoc
solum cave ne sanguinem comedas sanguis enim eorum pro anima est et idcirco non
debes animam comedere cum carnibus” ( Dt 12,23). Anima significa alma ou
vida, ânimo, aquilo que anima. Logo, alguns entenderam que comer o sangue era
comer a alma. Daí para a polêmica sobre a transfusão de sangue foi um pulo. Há
quem condene a transfusão de sangue baseando-se no texto de Dt 12,23,
argumentando, segundo a tradução da vulgata, que o sangue é a alma, e, assim
sendo, quem está doando sangue está doando a alma para outrem e quem está
recebendo a doação está, evidentemente também, recebendo a vida do outro.
Entendem, pois, que a transfusão de sangue é o mesmo que comer o sangue.
Compreensão
equivocada, certamente, que necessita de correção. A alma não está no sangue,
nem em nenhuma outra parte localizável do corpo. A alma é a pessoa, sua
identidade, seu modo de ser, o conjunto de características natas e adquiridas
que fazem a gente ser quem é diante de si, dos outros e de Deus. Não é porque
doamos sangue para alguém que tiramos um pedaço da alma. Muito menos, ao
receber uma doação de sangue, recebemos a alma do doador. Recebemos sim sua
generosidade, sua gratuidade em partilhar a vida e isso diz algo sobre ela, mas
sua alma não vem no sangue recebido.
Que
fique bem claro: na bíblia, não há nenhuma proibição quanto à transfusão de
sangue. Naquele tempo, ninguém pensava sobre a possibilidade de doar sangue
para outrem. Há na Bíblia uma proibição de comer sangue, o que é compreensível
para aquele tempo, conforme vimos acima. Tal proibição vem de uma compreensão
equivocada acerca do sopro de vida que habita em nós. Sobre a transfusão de
sangue é bom dizer uma palavrinha. Para quem precisa receber sangue, nada de
escrúpulos ou culpa. É só um procedimento médico como qualquer outro. Para quem
doa sangue é bom lembrar: não há maior amor do que dar a vida pelo outro. Doar
sangue é sinal de amor e desprendimento. Podendo ajudar, por que não fazê-lo?
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