domingo, 23 de maio de 2010

O testemunho de Jó

E prosseguiu Jó no seu discurso, dizendo:
Ah! Quem me dera ser como eu fui nos meses passados, como nos dias em que Deus me guardava! Quando fazia resplandecer a sua lâmpada sobre a minha cabeça e quando eu pela sua luz caminhava pelas trevas. Como fui nos dias da minha mocidade, quando o segredo de Deus estava sobre a minha tenda; Quando o Todo-Poderoso ainda estava comigo, e os meus filhos em redor de mim. Quando lavava os meus passos na manteiga, e da rocha me corriam ribeiros de azeite. Quando eu saía para a porta da cidade, e na rua fazia preparar a minha cadeira; os moços me viam, e se escondiam, e até os idosos se levantavam e se punham em pé; Os príncipes continham as suas palavras, e punham a mão sobre a sua boca; A voz dos nobres se calava, e a sua língua apegava-se ao seu paladar. Ouvindo-me algum ouvido, me tinha por bem-aventurado; vendo-me algum olho, dava testemunho de mim; Porque eu livrava o miserável, que clamava, como também o órfão que não tinha quem o socorresse. A bênção do que ia perecendo vinha sobre mim, e eu fazia que rejubilasse o coração da viúva. Vestia-me da justiça, e ela me servia de vestimenta; como manto e diadema era a minha justiça. Eu me fazia de olhos para o cego, e de pés para o coxo.
Dos necessitados era pai, e as causas de que eu não tinha conhecimento inquiria com diligência; E quebrava os queixos do perverso, e dos seus dentes tirava à presa. E dizia: No meu ninho expirarei, e multiplicarei os meus dias como a areia. A minha raiz se estendia junto às águas, e o orvalho permanecia sobre os meus ramos; A minha honra se renovava em mim, e o meu arco se reforçava na minha mão. Ouviam-me e esperavam, e em silêncio atendiam ao meu conselho. Havendo eu falado, não replicavam, e minhas razões destilavam sobre eles; Porque me esperavam, como à chuva; e abriam a sua boca, como à chuva tardia. Se eu ria para eles, não o criam, e a luz do meu rosto não fazia abater; Eu escolhia o seu caminho, assentava-me como chefe, e habitava como rei entre as suas tropas; como aquele que consola os que pranteiam.
Agora, porém, se riem de mim os de menos idade do que eu, cujos pais eu teria desdenhado de pôr com os cães do meu rebanho. De que também me serviria a força das mãos daqueles, cujo vigor se tinha esgotado? De míngua e fome se debilitaram; e recolhiam-se para os lugares secos, tenebrosos, assolados e desertos. Apanhavam malvas junto aos arbustos, e o seu mantimento eram as raízes dos zimbros. Do meio dos homens eram expulsos, e gritavam contra eles, como contra o ladrão; Para habitarem nos barrancos dos vales, e nas cavernas da terra e das rochas. Bramavam entre os arbustos, e ajuntavam-se debaixo das urtigas. Eram filhos de doidos, e filhos de gente sem nome, e da terra foram expulsos. Agora, porém, sou a sua canção, e lhes sirvo de provérbio. Abominam-me, e fogem para longe de mim, e no meu rosto não se privam de cuspir. Porque Deus desatou a sua corda, e me oprimiu, por isso sacudiram de si o freio perante o meu rosto. À direita se levantam os moços; empurram os meus pés, e preparam contra mim os seus caminhos de destruição. Desbaratam-me o caminho; promovem a minha miséria; contra eles não há ajudador. Vêm contra mim como por uma grande brecha, e revolvem-se entre a assolação. Sobrevieram-me pavores; como vento perseguem a minha honra, e como nuvem passou a minha felicidade. E agora derrama-se em mim a minha alma; os dias da aflição se apoderaram de mim. De noite se me traspassam os meus ossos, e os meus nervos não descansam. Pela grandeza do meu mal está desfigurada a minha veste, que, como a gola da minha túnica, me cinge. Lançou-me na lama, e fiquei semelhante ao pó e à cinza. Clamo a ti, porém, tu não me respondes; estou em pé, porém, para mim não atentas. Tornaste-te cruel contra mim; com a força da tua mão resistes violentamente. Levantas-me sobre o vento, fazes-me cavalgar sobre ele, e derretes-me o ser. Porque eu sei que me levarás à morte e à casa do ajuntamento determinada a todos os viventes. Porém não estenderá a mão para o túmulo, ainda que eles clamem na sua destruição. Porventura não chorei sobre aquele que estava aflito, ou não se angustiou a minha alma pelo necessitado?
Todavia aguardando eu o bem, então me veio o mal, esperando eu a luz, veio a escuridão. As minhas entranhas fervem e não estão quietas; os dias da aflição me surpreendem. Denegrido ando, porém não do sol; levantando-me na congregação, clamo por socorro. Irmão me fiz dos chacais, e companheiro dos avestruzes. Enegreceu-se a minha pele sobre mim, e os meus ossos estão queimados do calor. A minha harpa se tornou em luto, e o meu órgão em voz dos que choram.
Fiz aliança com os meus olhos; como, pois, os fixaria numa virgem? Que porção teria eu do Deus lá de cima, ou que herança do Todo-Poderoso desde as alturas? Porventura não é a perdição para o perverso, o desastre para os que praticam iniqüidade? Ou não vê ele os meus caminhos, e não conta todos os meus passos? Se andei com falsidade, e se o meu pé se apressou para o engano (Pese-me em balanças fiéis, e saberá Deus a minha sinceridade), Se os meus passos se desviaram do caminho, e se o meu coração segue os meus olhos, e se às minhas mãos se apegou qualquer coisa, Então semeie eu e outro coma, e seja a minha descendência arrancada até a raiz. Se o meu coração se deixou seduzir por uma mulher, ou se eu armei traições à porta do meu próximo, Então moa minha mulher para outro, e outros se encurvem sobre ela, Porque é uma infâmia, e é delito pertencente aos juízes. Porque é fogo que consome até a perdição, e desarraigaria toda a minha renda. Se desprezei o direito do meu servo ou da minha serva, quando eles contendiam comigo; Então que faria eu quando Deus se levantasse? E, inquirindo a causa, que lhe responderia? Aquele que me formou no ventre não o fez também a ele? Ou não nos formou do mesmo modo na madre? Se retive o que os pobres desejavam, ou fiz desfalecer os olhos da viúva, Ou se, sozinho comi o meu bocado, e o órfão não comeu dele (Porque desde a minha mocidade cresceu comigo como com seu pai, e fui o guia da viúva desde o ventre de minha mãe), Se alguém vi perecer por falta de roupa, e ao necessitado por não ter coberta, Se os seus lombos não me abençoaram, se ele não se aquentava com as peles dos meus cordeiros, Se eu levantei a minha mão contra o órfão, porquanto na porta via a minha ajuda, Então caia do ombro a minha espádua, e separe-se o meu braço do osso. Porque o castigo de Deus era para mim um assombro, e eu não podia suportar a sua grandeza. Se no ouro pus a minha esperança, ou disse ao ouro fino: Tu és a minha confiança; Se me alegrei de que era muita a minha riqueza, e de que a minha mão tinha alcançado muito; Se olhei para o sol, quando resplandecia, ou para a lua, caminhando gloriosa, e o meu coração se deixou enganar em oculto, e a minha boca beijou a minha mão, Também isto seria delito à punição de juízes; pois assim negaria a Deus que está lá em cima. Se me alegrei da desgraça do que me tem ódio, e se exultei quando o mal o atingiu (Também não deixei pecar a minha boca, desejando a sua morte com maldição); Se a gente da minha tenda não disse: Ah! Quem nos dará da sua carne? Nunca nos fartaríamos dela. O estrangeiro não passava a noite na rua; as minhas portas abria ao viandante. Se, como Adão, encobri as minhas transgressões, ocultando o meu delito no meu seio;Porque eu temia a grande multidão, e o desprezo das famílias me apavorava, e eu me calei, e não saí da porta; Ah! Quem me dera um que me ouvisse! Eis que o meu desejo é que o Todo-Poderoso me responda, e que o meu adversário escreva um livro. Por certo que o levaria sobre o meu ombro, sobre mim o ataria por coroa. O número dos meus passos lhe mostraria; como príncipe me chegaria a ele. Se a minha terra clamar contra mim, e se os seus sulcos juntamente chorarem, Se comi os seus frutos sem dinheiro, e sufoquei a alma dos seus donos, Por trigo me produza cardos, e por cevada joio. Acabaram-se as palavras de Jó.
(Bíblia Sagrada)

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